segunda-feira, 14 de junho de 2010

Etapa 13 Caminho Francês Santiago - Villafranca del Bierzo - O Cebreiro

Villafranca del Bierzo.
Hoje vou caminhar sózinho.
Dirijo-me à Colegiata, que teve origem num Mosteiro da Ordem de Clunny, e após umas quantas fotografias retomo o caminho.
Atravesso a ponte sobre o rio Bierzo. Cruzo a estrada. Baralho-me com as setas amarelas a indicarem vários caminhos. Avisto ao longe alguns peregrinos que circulam pela estrada. E por fim, após consultar o meu guia, escolho o caminho alternativo.
O caminho empedrado decorre por trás de umas quantas casas de pedra e, na penúltima, aparece escrito em letras garrafais "Caminho muito duro, apenas para caminheiros experimentados" e " Hard Walk". Penso com os meus botões e percebo porque avistei uns quantos peregrinos ao longo da estrada.Duas esbeltas alemãs, exageradamente carregadas de bens materiais, acondicionados em dois enormes mochilões, interrogam-se e olham-me na expectantes. Com um leve encolher de ombros assinalo-lhes que vou seguir. Lentamente decidem-se e seguem-me.
O desnível é acentuado mas as sombras frescas dos castanheiros e carvalhos, e o aroma das urzes floridas ajudam-nos a trepar. Um grupo de franceses vai-se dispersando e tagarela alegremente. Passo por eles em passo acelerado e saúdo: Olá! Buen Camino. Um ou outro contesta.
A paisagem à minha esquerda vai revelando novos horizontes a cada metro da subida. Paro para renovar águas e respirar fundo. O suor corre por baixo do chapéu de abas largas, adornado com uma concha de Santiago, que me tem protegido da chuva. Aqui revela-se incómodo. As árvores frondosas dão agora lugar aos arbustos.
Começo a duvidar em continuar. Não se vê vivalma. O grupo que ultrapassei não dá sinal de vida. Não os vejo aparecer entre as ramagens, nem ouço as suas vozes.
Por fim alcanço a cota máxima do carreiro. Sinto que me afasto cada vez mais da estrada que percorre o fundo do vale e como não vislumbro ninguém começo a pensar que hoje será o meu dia de meditação.
Ao longo de meia hora caminho em silêncio rodeado de urzes repletas de flores avermelhadas, pensando em milhentas coisas da vida. Começo a perceber o encanto de caminhar sozinho. Mas também me assusta. Chego a um bosque de pinheiros e giestas, onde me deparo com um "humilhadeiro" improvisado, marcado por uma cruz rodeada de pedrinhas, flores, escritos, marcas. O lugar é assustador, mas de uma beleza extraordinária. Bonito lugar para partir para sempre, penso. Sento-me numa pedra e limito-me a observar, embora a carga emocional que o local transmite esteja cada vez mais presente.
Cento e oitenta graus de vistas deslumbrantes. Á minha esquerda o caminho que percorri ladeado de flores. Ao fundo um monte coberto de carvalhos e castanheiros. Mais além os picos dos Montes de León, nevados. Depois, quase na minha frente, e após um desnível pronunciado, o vale del bierzo matizado de verdes, com um fio de água a rasgá-lo. Mais perto, também no fundo do vale, as omnipresentes vias de comunicação, pintadas de alcatrão cinza.À minha direita uma ladeira impressionante, do outro lado do rio e da estrada, coberta de urzes e pastagens. Ligeiramente atrás estende-se o caminho que me espera.
Neste lugar percebe-se o grito estridente do silêncio.
As pernas saltam impulsionadas por molas invisíveis, alimentadas por arrepios provocados pelos medos interiores que se revelam quando a dimensão dos sítios se mostra para além da razão.
Recomeço o caminho a toda a força. É nestes momentos que gostaríamos de voar para o próximo destino. Mas temos que pisar todas as pedras do caminho. Só nos é permitido contornar por breves instantes os pequenos obstáculos. As grandes montanhas vamos ter que movê-las.
O chilrear das aves desperta-me. Um corvo em voo rasante protesta a intromissão e assusta-me. À minha frente estende-se um souto de castanheiros centenários. Medito sobre duendes, fadas e bruxas. Recordo as descrições dos "Akelarres" nas Grutas de Zugarramudi. Neste bosque qualquer coisa pode acontecer.
Caminho centenas de metros envolto na mais profunda das ilusões até que resolvo reverter em benefício próprio o encanto e a força deste lugar.
Recordo os ensinamentos do Mestre e aproveito para receber forças de um castanheiro ancestral.
Agora é o corpo que me pede alimento. Olho à minha volta e reparo nas imensas castanhas ressequidas espalhadas pelo chão. Excelentes. Castanhas piladas ao natural. Com uma boa dose de água constituem a refeição ideal.
Continuo a percorrer este bosque encantado sem adivinhar sequer mais companheiros de viagem. O caminho chega a um cruzamento, onde duas setinhas marotas indicam cada uma a sua direcção. Como em frente tenho tenho um muro de pedra calcária rapidamente desisto da ideia de escolher o percurso do meio, apesar de me encontrar completamente ébrio de sensações. Escolho o percurso à esquerda, que, suponho , me aproxima do vale onde transcorre a estrada. Mas as setas mentirosas continuam a aparecer à minha frente, como que a convidar-me para seguir em direcção a um aglomerado de telhados que vejo lá ao longe. Atravesso umas hortas onde abundam as couves - talvez para o caldo gallego, e esbarro no alcatrão doutro caminho. Paro, expectante, e após alguns minutos uma velhota aparecida não sei bem de onde, balbucia-me: Está usted perdido? Respondo-lhe que seguia aquelas setas mas o que queria mesmo era chegar a Trabadelo - próxima povoação. Afinal as setas indicam a localização de um bar ali perto.
Dirigi-mo para o caminho correcto seguindo as indicações preciosas da idosa. Entretanto avisto no meio do souto alguns cavaleiros e respectivas montadas que logro alcançar no início de uma descida pedregosa e abrupta.Os cavaleiros desmontam e rapidamente os ultrapasso perdendo-os de vista. Lá ao fundo passa um rio, uma estrada nacional e uma autovia. O carreiro serpenteia pela encosta para vencer o forte desnível, cruzando por diversas vezes a estrada alcatroada. Quando verifico que para chegar à povoação tenho que fazer um par de quilómetros para trás, decido continuar pelo alcatrão até à estrada principal.Contorno umas instalações industriais e após mais uma descida íngreme alcanço a estrada.
Começam a aparecer os caminheiros, os peregrinos, os turistas do caminho. Primeiro são dois Btt´s italianos, depois um barbudo valenciano, mais à frente um casalinho jovem de habla espanhola. Afinal eles andam por aí  e só pensam em chegar. Pergunto-me se por acaso saboreiam algo do CAMINO.
Atravesso uma pequena ponte situada por baixo de um viaduto da autovia, e começa o inferno. Deslocamos-nos ao longo da estrada, separados apenas um ou dois metros da via onde circulam imensos camiões TIR. A deslocação de ar atira-nos para o lado e o cheiro a querosene entra-nos pelas narinas. Vai ser assim por longos quilómetros.
Atinjo uma estação de serviço, esfomeado e cansado, farto de respirar ar impuro, mas desisto do repasto. Apenas compro umas supostas cerejas del Bierzo. Entro agora na Vega de Valcarce, já a cheirar a Galiza.
Por fim afastamo-nos da via principal. Paro em Ambasmestas desejoso de saborear algo fresco. Continuo.
Um pouco mais adiante os meus amigos esperam-me para almoçar no único sítio que serve refeições.
Os peregrinos começam a encostar nos albergues, pois já passa da uma da tarde. A mim ainda me esperam três horas de caminho.
Paro por fim para a almejada refeição. Alivio a carga e ingiro duas loiras de uma assentada. A estalajadeira não é lá muito simpática mas promete-nos um almoço suculento.
Ainda sentados na esplanada vemos aproximar-se uma peregrina exausta, que estaciona no banco em frente atirando, literalmente, o seu enorme mochilão para o chão. Ocorre-me uma ideia peregrina e corro a aviar-me de mais uma loira flamejante que de imediato ofereço à caminheira. Agradece em alemão e não me dirige mais a palavra. Nem a senti partir.
Após a lauta refeição composta de "lentejas" e filete de ternera, parto para mais três horas de caminhada.
Ainda pela estrada de alcatrão que vai subindo lentamente até Pedrafita do Cebreiro, acerco-me a Ferrarias. Como o nome indica também aqui haveria inúmeros moinhos de água que dariam força motriz  às forjas. Por fim deixo a estrada principal em direcção a Hospital.
Os frondosos choupos ensombram o caminho e a proximidade de um riacho refresca esta hora da tarde. Passada a aldeia o caminho empina-se desafiando as poucas forças que restam. Cruzo-me com um casal que peregrina sem grandes atavios mas, apesar disso, com alguma dificuldade. Volto a cruzar-me com a alemã exausta que caminha lentamente. Troco algumas palavras com ela. Irá descansar em Cebreiro - no fim terão sido cerca de trinta quilómetros na mais dura etapa até à data.
Retomo a minha passada e entranho-me num bosque de castanheiros e carvalhos, muito húmido e agradável. Por fim chego a Faba. Neste local desistem muitos dos que pensam subir até ao Cebreiro. Os albergues estão cheios. Paro num deles para um respiro.Volto ao caminho pedregoso e sombrio até A Lagoa de Castela.
Agora já não sinto nem as pernas, nem os pés. Talvez esteja voando em direcção a Cebreiro. Milagrosamente o percurso deixa de subir contornando agora o fim do vale. Avistam-se picos a perder de vista. Dum lado os Ancares. Do outro, Las Medulas.Mais um par de quilómetros e assomo ao Cebreiro.
Subo ao mirador e admiro extasiado o Sol a expraiar-se pelos Picos dos Ancares. Entro pelo pátio da Igreja Românica, passo ao lado do antigo Hospital de Peregrinos e percorro alguns metros pelo bulício das ruas. Sucedem-se bares, Albergues, pensões. Algumas casas de pedra apresentam-se cobertas por telhados de colmo - uma beleza. O menos bom deste local é a paisagem humana. Além dos milhentos peregrinos que por aqui pernoitam temos ainda os excursionistas que visitam este local aos magotes. E claro, os locais aproveitam-se fazendo pagar bem as maravilhas deste sítio.
Um amigo espera-me e aproveito para esgotar o saco de cerejas, acompanhando-as com duas cañas. Não é a melhor combinação mas o efeito resulta estupendamente. Vários curiosos aproximam-se e perguntam o que enche a garrafinha de água, mas nenhum se atreve a provar o distinto fruto, apesar da minha insistência. Nunca viram tal coisa. Estes serão certamente os verdadeiros peregrinos. Aqueles que de descoberta em descoberta, de surpresa em surpresa, vão construindo o seu Caminho.
Apetecia ficar por aqui. Mas o incrível Hotel Rural em Ferrarias de Valcarce espera-nos. Aí chegados e após o banho merecido assistimos ao pôr-do-sol sentados placidamente no bordo de um terraço debruçado sobre uma ribeira que atravessa o prado intensamente verde. Um pescador de trutas deambula pelas margens. Para lá dos choupos adivinha-se o apascentar pachorrento dos animais. Mais acima dois cumes recortam o céu azul. As encostas apresentam-se atapetadas por laivos vermelho escuro. Do outro lado o bosque que encima a Faba. Belíssimo.
O jantar, servido numa sala envidraçada, compõe-se de saladas e trutas grelhadas. Divino.
Há que voltar aqui brevemente e em força.

1 Comments:

Blogger tigusto said...

Boas!
Relato inspirado este! Sinto aqui a dureza do percurso... felizmente, talvez devido à famigerada Lei das Compensações, a coisa termina em glória!
Abraço!

segunda-feira, junho 14, 2010 10:54:00 da tarde  

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