quinta-feira, 3 de junho de 2010

Camin de santiag Etapa 12 - Ponferrada - Villanfranca del Bierzo A paisagem em mudança

Para sair de Ponferrada temos que contornar a cidade numa imensa volta que nos leva ao antigo bairro operário de Compostilla. O calor abrasa e este circuito urbano não agrada. Sempre por estrada e entrando em povoações e cruzando estradas chegamos a Columbrianos. Impressionam-nos as inúmeras hortas pejadas de árvores de fruta. As cerejas já ganham côr. Estamos num vale - El Bierzo, onde o microclima espalha alegria e côr pelos campos. Ao fundo os picos nevados ameaçam este paraíso. Circulando por passeios ou arruamentos de novas urbanizações alcançamos Camponaraya. Como é muito cedo o caminho faz-se suportável. Vemos alguns peregrinos pelo caminho, poucos. Um cidadão local acompanha-nos por mais de meia hora e conta-nos a sua admiração por Portugal, para onde viaja com frequência. Ao que parece não é só a paisagem natural que está a mudar, também o aspecto humano se revela, aqui, de uma salutar simpatia e acolhimento. A dureza da terra torna os homens rudes. Talvez o clima ameno e a terra fértil os torne dóceis. Ficamos a saber que o progresso que se vislumbra por Ponferrada se deveu ao fecho das minas. As ferrarias situam-se nas aldeias ao redor e, com o fim da actividade, a população concentrou-se no grande centro urbano trazendo novo dinamismo. Bom ou mau, positivo ou negativo? Não chegamos a consenso. Para mim o "progresso" aniquila a autenticidade dos sítios e transforma tudo numa uniformidade assustadora. Voltaremos alguma vez ás aldeias, renascerão as tradições? Ou viajaremos à velocidade da banda larga para a unicidade até à implosão final?
Talvez a crise nos retorne!
Antes de nos embrenharmos nos caminhos e já com duas horas e picos de andadura paramos para refrescar o corpo. Num bar localizado numa praça decorada com uma estatueta sobre um lago onde esguicham vários repuchos, uma simpática conterrânea de Chaves serve-nos quatro tapas e duas cervejas. - Estou aqui porque em Portugal não há trabalho. Diz-nos. Em Espanha ao que parece também não. 
Partimos. Junto ás "bodegas" um letreiro convida o peregrino para uma tapa e um vinho a 1 euro. Pena ser Domingo e estarem encerradas.
Cruzamos a autovia por uma ponte. Começamos a avistar peregrinos. Entramos em campos cobertos de vinhedos que apresentam cêpas enormes, talvez centenárias. O dia promete. Rodeados de vinhas chegamos a um improvisado humilhadeiro - pelo Caminho encontram-se muitos. Uma águia persegue uma cegonha, estranho. Vimos corvos a perseguir e a lutar com águias, mas uma cegonha acossada por uma águia? Será um sinal? Os choupos ladeiam um curso de água e a sombra agradece-se. Caminheiros de fim de semana exercitam as pernas. Aqui todos são simpáticos. Cheira a Galiza por todos os lados. As vinhas sucedem-se. Começam a ver-se lindas vivendas e algumas adegas. Temos Cacabelos à vista. Ao longe soam foguetes. Chegamos à praça de São Lázaro onde esteve a malateria. Hoje está aqui instalado um complexo do Prada a Tope. Hotel, restaurante, bar. O conjunto é harmonioso com as suas casas de pedra e os balcões de madeira. Merece uma paragem e uma visita atenta. Na loja encontram-se todos os produtos de El Bierzo - enchidos, conservas, licores e claro, vinhos. Sentamo-nos a uma mesa de madeira e observamos. Vemos circular uma bandeja de vinho e "empanadas" e logo a inveja nos rói. Lá teremos que tomar um copo apesar de estarmos na hora de almoço e termos planeado o repasto para o centro do lugar. A simpática camareira pede-me para esperar. Pouco depois traz-me uma bandeja com dois troços da famosa empada e dois copos de vinho. è oferta da casa para os peregrinos. Lá apomos mais um "sello" na credencial.
No caminho para que a credencial seja credível há que ir coleccionado carimbos ao longo das etapas. Pelo menos dois por dia.
Infiltramo-nos na aldeia pela rua principal, onde ainda se podem observar dezenas de casas típicas com as suas "balconadas" de madeira. A rua vai estreitando. Espreitamos um ou outro albergue. Mas o que procuramos é um local para comer. Talvez por estarmos perto da Galiza as "Pulperias" sucedem-se. Mas procuramos algo mais substancial. Atenção porque hoje é Domingo e os menus para os peregrinos esfumaram-se. Os restaurantes estão cheios de autóctones e os donos não têm "paciência" para nos aturar. Somos delicadamente enxotados do local que procuravamos - Meson o Apostol. Raio de nome... Acabamos por entrar na Pulperia Compostela. Foi por pouco. Começam a chegar multidões que invadem a sala de forma ruidosa - estamos em España, claro. Lá saboreamos o Pulpo e o Ribeiro o melhor que podemos e de novo ao caminho.
Saímos da povoação por uma ponte que transpôe o rio Cúa. Nas margens, peregrinos e domingueiros estendem-se na relva ao sol. O caminho ladeia a estrada e o sol e o polvo tornam as pernas duplamente pesadas - sem falarmos no Ribeiro.
Um speedy gonzaléz dos caminhos, com muitos sessenta anos ultrapassa-nos pela estrada e pragueja qualquer coisa. Se não levasse dois bastões, um em cada mão, certamente ... não circularia tão depressa. Ou teria tomado Red-bull com ... Vodka.
O homem distrai a nossa atenção e quase o seguimos estrada fora. A maioria dos peregrinos a pé e a prática totalidade dos ciclistas circulam alegremente pela berna das estradas - o que interessa é chegar.
 Não é verdade. O que é importante é ir, estar, parar, seguir. O caminho é feito de desvios, de fintas, de recuos, de lateralizações. O caminho de cada um é aquele que em cada momento se pisa. E por muitos sinais que te convidam a ir por aí, muitas vezes deves gritar bem alto - Só sei que não vou por aí.
Nãonão vou por Só vou por onde, Me levam meus próprios passos. ... Não sei por onde vouNão sei para onde vouSei que não vou por !  - José Régio.

Muitas vezes alguém pinta setinhas amarelas para te levar ao seu Albergue, ao seu Bar. A nossa opção, e aquela que aconselho, é fugir sempre do alcatrão. Sendo assim tomamos um caminho de terra à nossa direita, por entre vinhedos, que nos afasta cada vez mais de Villafranca del Bierzo. As sombras, embora escassas, vão aparecendo aqui e ali projectadas por doces amendoeiras. Uma peregrina sentada no vinhedo, ao sol, olhava o horizonte e meditava sobre um pequeno livro. Quase nos ignora. E lá seguimos.
Estamos na variante de Valtuille. Aparecem as primeiras casas entre cerejeiras. O primeiro bar improvisado na garagem de uma vivenda onde uma casal de meia idade fazia de estalajadeiro. Mais uma vivenda com garagem e bar improvisado. Chapéus de sol vermelhos, da coca-cola, cadeiras e mesas de plástico e duas matronas imensas, sentadas, à espera do próximo peregrino. Não paramos. Atravessamos a aldeia de casas de pedra, algumas arruinadas, de telhados de xisto, algumas caídos. As lojas no rés-do-chão albergam as vacas e os fenos e as alfaias. No primeiro andar uma velha assoma. 
A sombra dos choupos abriga-nos, as hortas distraiem-nos do cansaço, as vinhas convidam-nos a ficar.
Já para além da última casa, do nosso lado direito, surge-nos mais um bar improvisado instalado em barraca de lata e com meia dúzia de mesas de cores e formas diversas. Um homem corpulento, dobrado sobre uma mesa, dormita. Um letreiro anuncia cafés e chás quentes, cervejas e sumos frios e "tapas". Procuramos não o despertar, e, em silêncio, entramos num bosque de choupos, que ladeia um pequeno percurso de água. Nisto um corvo grasna e o meu companheiro de viagem grita imitando-o. Nisto houve-se uma voz estrondosa: - Oh! Hei! Aqui café, bebidas, tapas. Vocifera mais palavras indecifráveis, esbraceja quando voltamos a vista atrás. Desfazemo-nos em gargalhadas mal disfarçadas. Imaginem o pobre taberneiro amador que adormeceu no momento em que dois potenciais fregueses passam à sua beira. Porra! todo o dia à espera de clientes e agora que eles passam, já eram. 
Seguimos pelos vinhedos. Aqui e ali placas estrategicamente colocadas informam sobre as adegas, as castas, os vinhos. Excelente ideia.
Uma paisagem desperta-me a curiosidade. Bem sei que o cansaço é grande - o calor, a distância, as longas horas de caminhada. Uma colina rodeada de vinhas, uma casa pintada de branco no cimo ladeada por dois pinheiros centenários, uma ribeira bordeando todo o conjunto e ao fundo os cumes das montanhas cobertos de neve. Vem-me à memória algo que já sonhei ou já imaginei muitas vezes, há longos anos atrás, quando tinha dificuldade em adormecer. Incrível. Só faltam os cavalos trotando ao longo do riacho e aquela roseira de botões vermelhos prestes a abrir. Podia ficar por aqui para sempre. Podia ser este o meu caminho. Na verdade podia encontrar aqui aquela paz que os sobressaltos do quotidiano e a inconstância dos outros não nos permitem. Será então aqui esse local tão especial que guardo na lapela do esquecimento? Voltarei. Não gosto de viver com fantasmas, nem com sombras. O caminho acontece ... Não se faz, não se percorre, simplesmente acontece.
As primeiras casas já se avistam: um albergue, outro albergue. Uma igreja românica. Uma peregrina oriental, japonesa ou sul-coreana, fotografa a jóia.
Ruelas após e confusão no caminho chegamos à bela praça central de Villafranca del Bierzo. As esplanadas reboçam de peregrinos acompanhados, sempre, de belas loiras - as cervejas. Não sei se já o disse, os alemães representam 80 por cento dos peregrinos com que me vou cruzando.Depois mais uma praça, o jardim, a igreja matriz por onde passa o caminho, mais uns passos pelas ruas mais desertas e de volta a Ponferrada em autocarro. 
Nos grandes eixos viários são fáceis as deslocações em autocarro para aqueles que preferem pernoitar nos grandes centros e fora do bulício dos albergues.

5 Comments:

Blogger afonso rocha said...

Não é só pelo cantico negro do Régio...o valor deste texto descritivo. Sim, senhor...20 valores, porque é o máximo. Ou então doutoramento honoris causa...
Tigusto...podias muito bem em pensar num livro bilingue (Português - Castelhano) com início na Ponta de Sagres acabando em Compostela.Pensa nisso. Faço umas gravuras para inserir numa edição especial e numerada de 100 exemplares, com lançamento e exposição precisamente, na ponta de sagres...e em Compostela...para descentralizar!
Vamos nessa????? Agora é que quero ver esse espírito de caminheiro, com uma proposta destas. Ora toma!
Abração.

Já me ia esquecendo...

"A simpática camareira pede-me para esperar. Pouco depois traz-me uma bandeja com dois troços da famosa empada e dois copos de vinho. è oferta da casa para os peregrinos."

Dá-me a morada para passar por lá...mesmo que faça um pouco de bluf...
depois prometo que vou à catedral...

sexta-feira, junho 04, 2010 1:07:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

O autor destes textos é Joaquim Moura Antunes e merece ser reconhecido por todos pela sua excelente escrita, pelo seu espírito, pela sua paixão contagiante pelas coisas, pelas gentes, pela vida. Parabens.

sexta-feira, junho 04, 2010 10:24:00 da manhã  
Blogger tigusto said...

Olá Afonso!
O Joaquim Moura Antunes, conforme comentário acima, é nosso companheiro nestas coisas dos Sempre Por Maus Caminhos! Ele (Santareias) e eu (Tigusto) somos quem costuma alimentar este blog com imagens e palavras destas nossas voltas. O Joaquim tem esta forma extraordináriamente viva e sentida de escrever que eu também admiro. Estes últimos posts referem-se à experiência de ter feito o Caminho Francês De Santigo desde Burgos. Se puderes lê esses belos posts onde habitualmente também deixava um pequeno comentário à sua escrita. Já agora recomendo-te também os posts sobre a Via Algarviana feita em Março deste ano com algumas pessoas da Almargem que conheces.
Aquele abraço.
José Lemos. (o Tigusto do http://dequasetudoequasenada.blogspot.com/)

sexta-feira, junho 04, 2010 9:00:00 da tarde  
Blogger afonso rocha said...

Agora reparei que quem postou foi o Santareias
e não o Lemos (tigusto)...mas tu não lhe ficas atrás... (nas caminhadas não sei...)aliás...complementam-se e muitíssimo bem.
SANTAREIAS...DESCULPA O MEU LAPSO!!!!!SE O LEMOS ESCREVE COMO ESCREVE...SE DEVE A TI...ENTÃO TIRO-TE O CHAPÉU...PORQUE ÉS UM ÓTIMO PROFESSOR!!!!!E UM EXCELENTE CRONISTA!
Portanto....aqui fica o re(p)to!!!!
Ao prof e ao discípulo (eheheh)...pensem em publicar um livro os dois....
eu posso dar uma ajudinha....é só combinarmos em quê!!!!! Na medida do possível!!!!

Só um àparte. Sou português...mas hoje dia 10 de Junho estou farto das buzinas da polícia e da parada ou demonstração militar (para quê? com que fim?) das comemoraçoes aqui em Faro...
Aprecio mais...o festival do MARISCO...e da Sardinha!!!!!
Abração aos dois
Ti Gusto e Sant Areias (que nomes!!!!!)

quinta-feira, junho 10, 2010 10:41:00 da tarde  
Blogger tigusto said...

eheheheh!!! Realmente não há pachorra para estas estadalhices! Nós também gostamos desses outros festivais :-) e outros como o do Cogumelo e Medronho em S. Barnabé com visita a umas capelas (destilarias) e tudo, da transumância no Fundão, etc e tal! Mais povo mesmo!
Tigusto é uma alcunha dos tempos da primária... uma brincadeira qualquer com Tio Augusto e ficou Tigusto até hoje... para os amigos! Santareis tem a ver com as origem do Joaquim: Santo António das Areias ali para as bandas de Marvão. Está desfeito o mistério!
Abraço!

sexta-feira, junho 11, 2010 6:19:00 da tarde  

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